domingo, 30 de março de 2008

Maior fraude da Zoologia, ou a superficialidade da má-fé

No último artigo (de 26-3-2008) do blog Amante da Rosa, a autora apresenta uma curiosa história sobre o Lagarto Gigante do Jardim das Hespérides (leia-se Cabo Verde).

Numa correspondência que trocamos, esta amiga bloguista me convida a escrever algo sobre o assunto. Fiquei um pouco dividido, pois motivações diversas me compeliam em direcções antagónicas:
  • Queria escrever algo para me insurgir contra o escárnio e as banalidades proferidas pela escritora Maria Estela Guedes
  • Não queria escrever sobre o lagarto, pois ainda não abrira um blog de discussão científica geral.
  • Queria escrever sobre o assunto, porque um antepassado meu foi parte envolvida nesta área da herptologia.
  • Não queria escrever porque tinha planeado outro artigo para este Domingo (já o prometera a um amigo)
  • Queria escrever porque me senti lisonjeado ao receber tal convite de uma dama que mantém um dos melhores (o mais instrutivo) blogs de Cabo Verde.
  • Não queria escrever porque não é muita coisa o que poderia dizer sobre este réptil
Acabei por decidir escrever pois as razões para tal me pareciam mais fortes!

Dado a que estou a escrever num blog autobiográfico e centrado na minha pessoa, eis em primeiro lugar um histórico da minha relação com o réptil:

Em criança, deleitava-me a ler os livros da colecção Ver & Saber da editorial Verbo. O número nove desta colecção intitulava-se "os Répteis". Tinha eu dez anos e fiquei a saber que os répteis se dividiam em quatro ordens com os seguintes nomes genéricos: sáurios (lagartos), quelónios (tararugas), ofídios (cobras) e crocodilianos (crocodilos). Naturalmente que as duas primeiras ordens me despertaram mais a curiosidade, pois eram aquelas que existiam em Cabo Verde. Como na nossa terra as tartarugas eram apenas as marinhas, lá me contentava a observar as lagartixas e osgas e cheguei até a dissecar lagartixas que colegas "pescavam" com moscas enfiadas em anzóis. Querendo ler outros livros e perguntando a quem soubesse, tive então a oportunidade de saber da existência do lagarto gigante do ilhéu Raso. Sonhava em poder lá ir observá-lo de perto.

Um belo dia (Dezembro de 1976) pude então observar dois exemplares vivos de um sáurio, com talvez 50 cm, no Jardim Zoológico de Lisboa, cuja legenda do "aquário" dizia "Osgas gigantes de Cabo Verde". Será que eram osgas? Será que eles se enganaram na proveniência (ou era "bleuff"). Não me recordo do nome científico, mas não me esqueci da cena nem do gigantismo da "lagartixa".

Mais tarde, vim a dirigir o Departamento de Recursos Naturais do INIDA (Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Agrário) e a secção ligada à biodiversidade se "divertia" com pássaros e répteis de Cabo Verde; Hazevoet era um cooperante que connosco trabalhava e tivemos um dia uma interessante conversa sobre o animal reptiliano. Em 1991, fiz parte da equipa de consultores (éramos quatro) que preparou o Relatório Nacional para a Conferência do Rio sobre o Ambiente. Várias vezes entre nós nomeávamos o Macrocincus Coctei como exemplo de espécie extinta.

Recentemente, fiquei a saber que um tio-tetravô meu, o Doutor Francisco Frederico Hopffer (muitas vezes lembrado por minha avó materna), era também um amante da biologia e correspondia-se com Barbosa du Bocage, insigne naturalista português a quem enviara exemplares do lagarto em causa, como menciona Amante da Rosa em seu artigo.

Vejamos agora um extracto do LIVRO BRANCO SOBRE O ESTADO DO AMBIENTE que o nosso Ministério do Ambiente Agricultura e Pescas fez publicar em 2004:
"Em relação à colheita de material biológico de origem animal, pode-se exemplificar com a colheita de exemplares de répteis,mais concretamente Macroscincus coctei (Lagarto gigante de Cabo Verde com cerca de 60 cm de comprimento, já extinto). Se se quantificar os colectores que fizeram recolhas dessa espécie em Cabo Verde (Troschel em 1875: Bocaje 1896, Peracca 1891; Schiaretti 1891; Jamrack 1891; Green 1876 etc) e os exemplares existentes em vários Museus do mundo como por exemplo na Itália (Turin, Genoae e Florence - com 26 exemplares) em Londres (London Zoo, Natural History Museum of London) e em Portugal, e 45 exemplares importados no fim do século XIX ou seja, no Verão de 1891, pelo Sr. M. G. Peracca, poder-se-à concluir que a extinção dessa espécie se deve, em parte, à colheita desregrada de exemplares da espécie."
Como podem constatar, há vários sítios onde ainda hoje se pode lá ir medir o tamanho destes animais. Como pode Estela Guedes apelidar de "fraude da Zoologia" relegando a dimensão do sáurio para meros 17cm? A fotografia ao lado deste parágrafo, é elucidativa do tamanho bem superior a 17cm (no entanto um pouco inferior aos 570 mm de Bocage) dum dos 26 exemplares conservados nos museus italianos (o italiano Leonardo Fea, foi um dos primeiros naturalistas a ver exemplares vivos do Macroscincus)

Estudos profundos e altamente científicos, têm sido feitos a respeito deste lagarto. Menciono um recente, em que o DNA de amostras de 75 lagartixas cabo-verdianas actuais foi comparado com o de amostras de 16 Macroscincus conservados em museus. Este estudo visa determinar se o gigantismo do Macroscincus era devido a uma evolução de uma Mabuya (as lagartixas CV actuais) ou de uma outra espécie paralela.
A respeito de estudos do passado, deixo-vos agora com mais um extracto do Livro Branco:
Outro recurso natural cuja depredação conduziu à sua extinção é o lagarto gigante, Macroscincus coctei (Balouet & Alibert, 1989; Barillie & Groombridje, 1996), espécie de réptil endémico de Cabo Verde. Durante o século XIX, a Administração Colonial Portuguesa exilou para o ilhéu Branco os infractores à lei. Admite-se que os exilados tivessem utilizado para a sua alimentação peixes, aves marinhas, bem como capturado répteis, dos quais constaria o Macroscincus coctei (Bocage, 1873, in Hazevoet, 1995). Hazevoet (1995), cita J. da Silva Feijó que deu conta da utilização da pele de Macroscincus coctei (pelos habitantes das ilhas vizinhas) para o fabrico de sapatos. Alexander (1898a, citado por Hazevoet, 1995) ainda em 1897, encontrou esse réptil nos ilhéus Raso e Branco. Em 1912, Friedlaender (1913-citado por Hazevoet, 1995), considerou-o uma espécie muito rara para o ilhéu Raso. Nos ilhéus Branco e Raso, por exemplo, havia ainda nos fins do século XIX, exemplares de Macroscincus coctei.

Como não se trata de um artigo científico, mas de uma "espécie de nota ensaísta de rodapé", não me alargarei em pormenores outros como o da classificação taxonómica, da morfologia, do modus vivendi do animal, ou mesmo do seu surgimento em Cabo Verde.

Fiquem bem e até o próximo Domingo.

2 comentários:

  1. Gostei muito do post e queria agradecer por ter respondido ao apelo. Penso que o assunto ainda vai dar que falar junto a quem de direito. Como já tinha dito... para nós, que nem sabiamos da existência do lagarto gigante, a estória foi achado e a defesa da existencia do réptil e de quem esteve envolvido em todo o processo não poderia estar em melhores mãos. Mantive o teor do post - o contraditório (in)felizmente levanta mais curiosidade - deixando que os leitores confrontem os dados. Acrescentei contudo um último paragrafo onde chamei a atenção para o seu post. Muito obrigada. Carla

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  2. Boa tarde,
    Parabéns pelo blog.
    Bom fim-de-semana.
    António

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