domingo, 20 de maio de 2007

Memórias do Liceu Adriano Moreira na Praia

O meu percurso liceal foi pautado pela constante presença na crista da onda das transições. Tendo passado da 4ª classe para o ensino secundário no ano em que se abolira a “Admissão” e se criara o Ciclo Preparatório, deparei com a estreia da matemática moderna no novo plano curricular. A nossa professora de matemática era uma jovem açoriana de S. Miguel e de bata mais curta que a gestão moralista do liceu e da época impunham, lá nos ia captando a atenção (sobretudo aos rapazes de 12 anos; eu tinha 10) ao mesmo tempo que proferia uns “conjuuuntos dijuuuntos” com seu bom e típico sotaque micaelense.

Esta cena passava-se no saudoso ano lectivo de 1967-1968, ano em que ia pela primeira vez sentar-me nas carteiras de mogno, já riscadas, gatafunhadas e autografadas, do Liceu Adriano Moreira, sito na cidade da Praia, província ultramarina de Cabo Verde.

Confesso que embora sempre fosse um aluno atento e interessado, passei sete anos nesse liceu sem me ocorrer perguntar quem era Adriano Moreira e muito menos a razão por que puseram o nome de alguém vivo à linda e frondosa construção, considerada uma jóia de arquitectura e o liceu mais imponente do império colonial português. Tinha salão nobre, escadarias encimadas por quadros históricos dos descobrimentos (em azulejos) e uma belíssima torre com relógio e pára-raios.

Na senda das transições, apenas tirei a fotografia fardado da Mocidade Portuguesa, por razões administrativas, mas não desfilei nesse organismo pois a frequência deixara de ser obrigatória. No entanto, deleitávamos a ver passar os rapazes mais velhos “cantando e rindo” levados sim por não sei que chamariz mágico, de braços erguidos para a frente em ângulos de 45º.

Embora sem ésses no cinto e vendo os braços a 45º ao longe, não podíamos deixar de encontrar o nome e os retratos de Oliveira Salazar por todos os cantos desse liceu, nos livros e nos discursos de início de ano lectivo. A “força” estava patente nas normas e orientações, hoje consideradas inqualificáveis, da proibição de falar o crioulo, das turmas separadas por sexos, das grades circundando o liceu, das aulas obrigatórias de Religião (Católica), de alguns alunos que pareciam patrulhar os corredores e eram amigos dos filhos do inspector da PIDE.

Esta linha cortante, qual machado de lenhador, era materializada por um risco branco no pátio do liceu que separava os alunos de bata branca dos outros. Ai de quem transpusesse a fronteira!

Em 1970, com a substituição das fotografias nas salas de aula, começou a haver turmas mistas. Experiência tímida e piloto, lá fui eu para o 4º ano renovado, com 14 anos acabados de completar, inaugurar a primeira turma mista do liceu. Éramos seis púberes no meio de vinte e sete adolescentes calmeironas. Fomos singularizados pela nossa inofensiva idade (os mais novos do 4º ano) e colocados na turma de alunas mais velhas.

Tinha muita piada ter as colegas à nossa volta, pelas mais diversas razões menos pela biológica: umas porque éramos os melhores alunos e queriam nos “explorar”, outras exerciam poder maternal de nos proteger, e ainda havia as que nos queriam “tirar da casca” fazendo-nos retirar os agrafos que selavam algumas páginas dos Lusíadas que o docente “Sapinho” nos fizera agrafar no 1º dia de aulas, por conter estrofes que não eram para a nossa idade (censura decretada superiormente).

Sapinho era a alcunha do nosso afamado professor de língua portuguesa. Este nortenho, antigo seminarista, tinha o condão de fazer variar a vermelhidão de suas bochechas batraquianas consoante se entusiasmava ou se encolerizava (o que podia ser considerado normal) mas também conforme a ênfase que punha nos trechos que nos lia. Gostava muito de nos recitar umas linhas, a cada vez que se encontrava de bom humor esquecendo-se que era a enésima vez que o fazia:

“Ó tocador da biola repenica-me estes dedos, se te cobraram as cordas, aqui tens os meus cabelos”.

Um belo dia um dos nossos colegas levantou-se (muito sério) e perguntou-lhe porque era que os habitantes do norte de Portugal diziam “binho” em vez de vinho.

- Sabe, esta coisa de trocar os bês pelos “bês” é confusão do pobo.

- Então o Sr. é do “pobo” ! ouviu-se uma voz lá de trás (até agora por identificar).

No teste seguinte, o nosso humilhado professor se vingou ao colocar as cinco perguntas, dependentes da primeira, onde usara um vocábulo chave, por nós desconhecido.

Salvo raríssimas excepções, os nossos professores eram muito competentes e sabiam ensinar. O Liceu era bem equipado e adorávamos as aulas práticas, fazendo experiências de química sobre os tampos em ardósia das mesas do laboratório, ou dissecando ratos sob os gritinhos histéricos das matulonas nossas colegas.

O professor de ginástica, usava uns calções tão largos que a cada frase do seu monólogo de início de aula, fazia-os subir ao longo da cintura para deixá-los decair na frase seguinte e recomeçar o ciclo na terceira. Todos os anos dizia que era a última vez que nos dava aulas pois não era esse o seu ganha-pão (era funcionário do banco) e estava farto de ... (e desbobinava um rosário de injustiças e incongruências).

No ano seguinte lá estava ele subindo os calções de novo e dizendo que muito lhe tinham rogado para dar essas aulas mas que seria...”a última vez”.

Não posso deixar de mencionar o professor de ciências naturais, o qual mais me marcou e fez nascer em mim o gosto pela ciência e o espírito crítico. Baltazar era o nome desse Goês que tinha o curso de medicina sem o ter exercido, o de farmácia e dois anos de Direito. Exímio xadrezista lá usava “cascas de banana” nos seus testes e perguntas de raciocínios múltiplos à semelhança dos que se praticam nesse seu hobby favorito.

O Liceu tinha cerca de 400 alunos ao todo e o quadro de honra era para aqueles que não tinham nenhuma nota inferior a doze valores (cerca de nove disciplinas). O nº de alunos no Q. H. não ultrapassava 20. Conclui-se que eram apenas 5%, os considerados bons alunos e que, 12 valores eram difíceis de apanhar.

Graças ao Dr. Baltazar que sempre nos motivou para a excelência, pude ser “medalha de bronze” desse liceu, indo todos os anos (do 1º ao 5º) receber o prémio de 3º melhor aluno e o de 1º em matemática. A “medalha de prata” estava um ano mais avançada do que eu e “a de ouro” dois anos. (ambas tinham excelente desempenho em língua portuguesa e em história). No ano em que a “medalha de prata” foi estudar para Portugal veio o 25 de Abril e não houve mais prémios nesse Liceu. Assim acabei o 7º ano no ano da Independência realizando a ambição de ser o “medalha de ouro”, mas virtual, pois já não os havia prémios.

O 25 de Abril caiu de surpresa e ninguém parecia avaliar o impacte do que tinha acontecido, até o 1º de Maio seguinte onde então cada um deu uma de sua graça, manifestando-se das mais diversas formas. Alguns professores conotados com a PIDE foram impedidos pelos alunos de entrar no liceu, debaixo de apupos e insultos. Houve um até que viu seu automóvel incendiado.

À medida que os dias se passavam as coisas pioravam e as aulas eram boicotadas. Muitos professores abandonaram as ilhas. Tivemos apenas a avaliação de dois períodos.

No ano lectivo seguinte (1974/75), o elenco de professores mudou radicalmente. Alguns cabo-verdianos da diáspora e de esquerda, vieram nos substituir os conteúdos de Filosofia de pensadores clássicos, pelos do Materialismo Dialéctico, assim como a de Organização Política que passou do corporativismo do Estado Novo para os “meios de produção”, “ditadura do proletariado” etc.

Nesse ano, as grades deixaram de ter efeito e os estudantes misturavam-se e conviviam sem medos nem receios. É claro que o aproveitamento foi menor mas estava-se bem e ansiosos pelo dia da independência

Como se vê, comecei e acabei, irmanado com as transições, mudanças e inovações.

Este texto foi publicado num trabalho coordenado por: PEREIRA, Sara Marques., ed. Memórias do liceu português.Lisbon: Horizonte, 2006. Colecção Biblioteca do Educador. Lge. 8°, orig. illus. wrps. 319 pp., illus.ISBN: 972-24-1426-7.

domingo, 13 de maio de 2007

Um pouco da minha história

O programa Intimidades teve a gentileza de me convidar a participar e a contar um pouco da minha história de vida. Foram 25 minutos onde espelhei um pouco de mim, através de recordações de infância e da adolescência.

Tendo sido apresentado como Reitor da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, achei por bem colocar a 1ª parte do programa no Blog do Reitor.

A 2ª parte do programa desenvolve-se sob o título "Retratos de uma vida" que é uma curta narrativa do percurso da pessoa havendo como pano de fundo uma sucessão de fotografias e figuras com uma tonalidade sépia prepositadamente criada para dar a tal sensação de passado. Por isso coloquei-a na minha página do site genealógico que desenvolvo (sigam o link assinalado).

Agora vão poder seguir as restantes partes do citado programa; eis a 3ª parte onde inicio com a narração de como meu pai se preocupava com o eu não querer sair à rua e preferir ficar em casa:



Esta 4ª parte inicia-se com a rubrica interna "A palavra dos outros" e deparamos logo com o que Silvano Barros diz da sua missão de servir de capataz da irmã.




Vejamos agora a 5ª parte que se inicia com mais uma ronda da "A palavra dos outros", desta feita com pessoas amigas com quem trabalhei; falo agora do meu percurso em prol do Ensino Superior:



Para finalizar, eis a última parte onde falo de gastronomia:

domingo, 6 de maio de 2007

A verdadeira história do pseudónimo B. Leza

Várias vezes tenho ouvido as mais especulativas versões da razão pela qual o grande compositor cabo-verdiano Francisco Xavier da Cruz é conhecido por B.Leza ou Beléza. Uns até chegam ao cúmulo de alegar que um brasileiro de passagem por Mindelo, terá ouvido Xavier tocar uma morna e exclamara: "Qui beléza!".... E acham que o nosso compositor iria passar a usar o pseudónimo B. Léza por causa disso? A exclamação do brasileiro referia-se à música ou, quanto mais não seja, à situação vivida; Francisco não iria atribuir a si próprio um pseudónimo que não lhe dissesse nada sobre si ou sua vida. Um pseudónimo não é uma alcunha, é algo íntimo e de especial significado para quem o escolheu e o usa.

Posto isto, vou lhes contar uma pequena história familiar:

Francisco Xavier era funcionário dos CTT (Correios, Telégrafos e Telefones) e fora colocado em serviço na ilha do Fogo. Rapaz novo, apaixonou-se perdidamente por uma das mais lindas (quiçá ricas) donzelas de São Filipe: uma das filhas mais novas do conhecido armador e capitão Djédjé de nh' Antóni ou seja de meu bisavô José António da Silva Essa filha, de nome Raquel, era tão linda (de "cabelo basado") que era conhecida pelo nome de ... Beleza!

E o casamento até já estava marcado, quando o nosso Francisco teve um rombo nos cofres dos CTT, à sua guarda. Para evitar o escândalo, uma vez que Francisco Xavier era um homem honesto e o desfalque surgiu por possível negligência contabilística, o futuro sogro "bancou" com a quantia em falta que foi imediatamente reposta no cofre dos CTT e o caso foi abafado.

Francisco Xavier foi no entanto e de seguida, transferido, tendo o namoro, por força da distância, esfriado. Francisco, em homenagem ao seu grande amor, adoptou discretamente o pseudónimo B.Leza.