O meu percurso liceal foi pautado pela constante presença na crista da onda das transições. Tendo passado da 4ª classe para o ensino secundário no ano em que se abolira a “Admissão” e se criara o Ciclo Preparatório, deparei com a estreia da matemática moderna no novo plano curricular. A nossa professora de matemática era uma jovem açoriana de S. Miguel e de bata mais curta que a gestão moralista do liceu e da época impunham, lá nos ia captando a atenção (sobretudo aos rapazes de 12 anos; eu tinha 10) ao mesmo tempo que proferia uns “conjuuuntos dijuuuntos” com seu bom e típico sotaque micaelense.
Esta cena passava-se no saudoso ano lectivo de 1967-1968, ano em que ia pela primeira vez sentar-me nas carteiras de mogno, já riscadas, gatafunhadas e autografadas, do Liceu Adriano Moreira, sito na cidade da Praia, província ultramarina de Cabo Verde.
Confesso que embora sempre fosse um aluno atento e interessado, passei sete anos nesse liceu sem me ocorrer perguntar quem era Adriano Moreira e muito menos a razão por que puseram o nome de alguém vivo à linda e frondosa construção, considerada uma jóia de arquitectura e o liceu mais imponente do império colonial português. Tinha salão nobre, escadarias encimadas por quadros históricos dos descobrimentos (em azulejos) e uma belíssima torre com relógio e pára-raios.
Na senda das transições, apenas tirei a fotografia fardado da Mocidade Portuguesa, por razões administrativas, mas não desfilei nesse organismo pois a frequência deixara de ser obrigatória. No entanto, deleitávamos a ver passar os rapazes mais velhos “cantando e rindo” levados sim por não sei que chamariz mágico, de braços erguidos para a frente em ângulos de 45º.
Embora sem ésses no cinto e vendo os braços a 45º ao longe, não podíamos deixar de encontrar o nome e os retratos de Oliveira Salazar por todos os cantos desse liceu, nos livros e nos discursos de início de ano lectivo. A “força” estava patente nas normas e orientações, hoje consideradas inqualificáveis, da proibição de falar o crioulo, das turmas separadas por sexos, das grades circundando o liceu, das aulas obrigatórias de Religião (Católica), de alguns alunos que pareciam patrulhar os corredores e eram amigos dos filhos do inspector da PIDE.
Esta linha cortante, qual machado de lenhador, era materializada por um risco branco no pátio do liceu que separava os alunos de bata branca dos outros. Ai de quem transpusesse a fronteira!
Em 1970, com a substituição das fotografias nas salas de aula, começou a haver turmas mistas. Experiência tímida e piloto, lá fui eu para o 4º ano renovado, com 14 anos acabados de completar, inaugurar a primeira turma mista do liceu. Éramos seis púberes no meio de vinte e sete adolescentes calmeironas. Fomos singularizados pela nossa inofensiva idade (os mais novos do 4º ano) e colocados na turma de alunas mais velhas.
Tinha muita piada ter as colegas à nossa volta, pelas mais diversas razões menos pela biológica: umas porque éramos os melhores alunos e queriam nos “explorar”, outras exerciam poder maternal de nos proteger, e ainda havia as que nos queriam “tirar da casca” fazendo-nos retirar os agrafos que selavam algumas páginas dos Lusíadas que o docente “Sapinho” nos fizera agrafar no 1º dia de aulas, por conter estrofes que não eram para a nossa idade (censura decretada superiormente).
Sapinho era a alcunha do nosso afamado professor de língua portuguesa. Este nortenho, antigo seminarista, tinha o condão de fazer variar a vermelhidão de suas bochechas batraquianas consoante se entusiasmava ou se encolerizava (o que podia ser considerado normal) mas também conforme a ênfase que punha nos trechos que nos lia. Gostava muito de nos recitar umas linhas, a cada vez que se encontrava de bom humor esquecendo-se que era a enésima vez que o fazia:
“Ó tocador da biola repenica-me estes dedos, se te cobraram as cordas, aqui tens os meus cabelos”.
Um belo dia um dos nossos colegas levantou-se (muito sério) e perguntou-lhe porque era que os habitantes do norte de Portugal diziam “binho” em vez de vinho.
- Sabe, esta coisa de trocar os bês pelos “bês” é confusão do pobo.
- Então o Sr. é do “pobo” ! ouviu-se uma voz lá de trás (até agora por identificar).
No teste seguinte, o nosso humilhado professor se vingou ao colocar as cinco perguntas, dependentes da primeira, onde usara um vocábulo chave, por nós desconhecido.
Salvo raríssimas excepções, os nossos professores eram muito competentes e sabiam ensinar. O Liceu era bem equipado e adorávamos as aulas práticas, fazendo experiências de química sobre os tampos em ardósia das mesas do laboratório, ou dissecando ratos sob os gritinhos histéricos das matulonas nossas colegas.
O professor de ginástica, usava uns calções tão largos que a cada frase do seu monólogo de início de aula, fazia-os subir ao longo da cintura para deixá-los decair na frase seguinte e recomeçar o ciclo na terceira. Todos os anos dizia que era a última vez que nos dava aulas pois não era esse o seu ganha-pão (era funcionário do banco) e estava farto de ... (e desbobinava um rosário de injustiças e incongruências).
No ano seguinte lá estava ele subindo os calções de novo e dizendo que muito lhe tinham rogado para dar essas aulas mas que seria...”a última vez”.
Não posso deixar de mencionar o professor de ciências naturais, o qual mais me marcou e fez nascer em mim o gosto pela ciência e o espírito crítico. Baltazar era o nome desse Goês que tinha o curso de medicina sem o ter exercido, o de farmácia e dois anos de Direito. Exímio xadrezista lá usava “cascas de banana” nos seus testes e perguntas de raciocínios múltiplos à semelhança dos que se praticam nesse seu hobby favorito.
O Liceu tinha cerca de 400 alunos ao todo e o quadro de honra era para aqueles que não tinham nenhuma nota inferior a doze valores (cerca de nove disciplinas). O nº de alunos no Q. H. não ultrapassava 20. Conclui-se que eram apenas 5%, os considerados bons alunos e que, 12 valores eram difíceis de apanhar.
Graças ao Dr. Baltazar que sempre nos motivou para a excelência, pude ser “medalha de bronze” desse liceu, indo todos os anos (do 1º ao 5º) receber o prémio de 3º melhor aluno e o de 1º em matemática. A “medalha de prata” estava um ano mais avançada do que eu e “a de ouro” dois anos. (ambas tinham excelente desempenho em língua portuguesa e em história). No ano em que a “medalha de prata” foi estudar para Portugal veio o 25 de Abril e não houve mais prémios nesse Liceu. Assim acabei o 7º ano no ano da Independência realizando a ambição de ser o “medalha de ouro”, mas virtual, pois já não os havia prémios.
O 25 de Abril caiu de surpresa e ninguém parecia avaliar o impacte do que tinha acontecido, até o 1º de Maio seguinte onde então cada um deu uma de sua graça, manifestando-se das mais diversas formas. Alguns professores conotados com a PIDE foram impedidos pelos alunos de entrar no liceu, debaixo de apupos e insultos. Houve um até que viu seu automóvel incendiado.
À medida que os dias se passavam as coisas pioravam e as aulas eram boicotadas. Muitos professores abandonaram as ilhas. Tivemos apenas a avaliação de dois períodos.
No ano lectivo seguinte (1974/75), o elenco de professores mudou radicalmente. Alguns cabo-verdianos da diáspora e de esquerda, vieram nos substituir os conteúdos de Filosofia de pensadores clássicos, pelos do Materialismo Dialéctico, assim como a de Organização Política que passou do corporativismo do Estado Novo para os “meios de produção”, “ditadura do proletariado” etc.
Nesse ano, as grades deixaram de ter efeito e os estudantes misturavam-se e conviviam sem medos nem receios. É claro que o aproveitamento foi menor mas estava-se bem e ansiosos pelo dia da independência
Como se vê, comecei e acabei, irmanado com as transições, mudanças e inovações.
Este texto foi publicado num trabalho coordenado por: PEREIRA, Sara Marques., ed. Memórias do liceu português.Lisbon: Horizonte, 2006. Colecção Biblioteca do Educador. Lge. 8°, orig. illus. wrps. 319 pp., illus.ISBN: 972-24-1426-7.
Esta cena passava-se no saudoso ano lectivo de 1967-1968, ano em que ia pela primeira vez sentar-me nas carteiras de mogno, já riscadas, gatafunhadas e autografadas, do Liceu Adriano Moreira, sito na cidade da Praia, província ultramarina de Cabo Verde.
Confesso que embora sempre fosse um aluno atento e interessado, passei sete anos nesse liceu sem me ocorrer perguntar quem era Adriano Moreira e muito menos a razão por que puseram o nome de alguém vivo à linda e frondosa construção, considerada uma jóia de arquitectura e o liceu mais imponente do império colonial português. Tinha salão nobre, escadarias encimadas por quadros históricos dos descobrimentos (em azulejos) e uma belíssima torre com relógio e pára-raios.
Na senda das transições, apenas tirei a fotografia fardado da Mocidade Portuguesa, por razões administrativas, mas não desfilei nesse organismo pois a frequência deixara de ser obrigatória. No entanto, deleitávamos a ver passar os rapazes mais velhos “cantando e rindo” levados sim por não sei que chamariz mágico, de braços erguidos para a frente em ângulos de 45º.
Embora sem ésses no cinto e vendo os braços a 45º ao longe, não podíamos deixar de encontrar o nome e os retratos de Oliveira Salazar por todos os cantos desse liceu, nos livros e nos discursos de início de ano lectivo. A “força” estava patente nas normas e orientações, hoje consideradas inqualificáveis, da proibição de falar o crioulo, das turmas separadas por sexos, das grades circundando o liceu, das aulas obrigatórias de Religião (Católica), de alguns alunos que pareciam patrulhar os corredores e eram amigos dos filhos do inspector da PIDE.
Esta linha cortante, qual machado de lenhador, era materializada por um risco branco no pátio do liceu que separava os alunos de bata branca dos outros. Ai de quem transpusesse a fronteira!
Em 1970, com a substituição das fotografias nas salas de aula, começou a haver turmas mistas. Experiência tímida e piloto, lá fui eu para o 4º ano renovado, com 14 anos acabados de completar, inaugurar a primeira turma mista do liceu. Éramos seis púberes no meio de vinte e sete adolescentes calmeironas. Fomos singularizados pela nossa inofensiva idade (os mais novos do 4º ano) e colocados na turma de alunas mais velhas.
Tinha muita piada ter as colegas à nossa volta, pelas mais diversas razões menos pela biológica: umas porque éramos os melhores alunos e queriam nos “explorar”, outras exerciam poder maternal de nos proteger, e ainda havia as que nos queriam “tirar da casca” fazendo-nos retirar os agrafos que selavam algumas páginas dos Lusíadas que o docente “Sapinho” nos fizera agrafar no 1º dia de aulas, por conter estrofes que não eram para a nossa idade (censura decretada superiormente).
Sapinho era a alcunha do nosso afamado professor de língua portuguesa. Este nortenho, antigo seminarista, tinha o condão de fazer variar a vermelhidão de suas bochechas batraquianas consoante se entusiasmava ou se encolerizava (o que podia ser considerado normal) mas também conforme a ênfase que punha nos trechos que nos lia. Gostava muito de nos recitar umas linhas, a cada vez que se encontrava de bom humor esquecendo-se que era a enésima vez que o fazia:
“Ó tocador da biola repenica-me estes dedos, se te cobraram as cordas, aqui tens os meus cabelos”.
Um belo dia um dos nossos colegas levantou-se (muito sério) e perguntou-lhe porque era que os habitantes do norte de Portugal diziam “binho” em vez de vinho.
- Sabe, esta coisa de trocar os bês pelos “bês” é confusão do pobo.
- Então o Sr. é do “pobo” ! ouviu-se uma voz lá de trás (até agora por identificar).
No teste seguinte, o nosso humilhado professor se vingou ao colocar as cinco perguntas, dependentes da primeira, onde usara um vocábulo chave, por nós desconhecido.
Salvo raríssimas excepções, os nossos professores eram muito competentes e sabiam ensinar. O Liceu era bem equipado e adorávamos as aulas práticas, fazendo experiências de química sobre os tampos em ardósia das mesas do laboratório, ou dissecando ratos sob os gritinhos histéricos das matulonas nossas colegas.
O professor de ginástica, usava uns calções tão largos que a cada frase do seu monólogo de início de aula, fazia-os subir ao longo da cintura para deixá-los decair na frase seguinte e recomeçar o ciclo na terceira. Todos os anos dizia que era a última vez que nos dava aulas pois não era esse o seu ganha-pão (era funcionário do banco) e estava farto de ... (e desbobinava um rosário de injustiças e incongruências).
No ano seguinte lá estava ele subindo os calções de novo e dizendo que muito lhe tinham rogado para dar essas aulas mas que seria...”a última vez”.
Não posso deixar de mencionar o professor de ciências naturais, o qual mais me marcou e fez nascer em mim o gosto pela ciência e o espírito crítico. Baltazar era o nome desse Goês que tinha o curso de medicina sem o ter exercido, o de farmácia e dois anos de Direito. Exímio xadrezista lá usava “cascas de banana” nos seus testes e perguntas de raciocínios múltiplos à semelhança dos que se praticam nesse seu hobby favorito.
O Liceu tinha cerca de 400 alunos ao todo e o quadro de honra era para aqueles que não tinham nenhuma nota inferior a doze valores (cerca de nove disciplinas). O nº de alunos no Q. H. não ultrapassava 20. Conclui-se que eram apenas 5%, os considerados bons alunos e que, 12 valores eram difíceis de apanhar.
Graças ao Dr. Baltazar que sempre nos motivou para a excelência, pude ser “medalha de bronze” desse liceu, indo todos os anos (do 1º ao 5º) receber o prémio de 3º melhor aluno e o de 1º em matemática. A “medalha de prata” estava um ano mais avançada do que eu e “a de ouro” dois anos. (ambas tinham excelente desempenho em língua portuguesa e em história). No ano em que a “medalha de prata” foi estudar para Portugal veio o 25 de Abril e não houve mais prémios nesse Liceu. Assim acabei o 7º ano no ano da Independência realizando a ambição de ser o “medalha de ouro”, mas virtual, pois já não os havia prémios.
O 25 de Abril caiu de surpresa e ninguém parecia avaliar o impacte do que tinha acontecido, até o 1º de Maio seguinte onde então cada um deu uma de sua graça, manifestando-se das mais diversas formas. Alguns professores conotados com a PIDE foram impedidos pelos alunos de entrar no liceu, debaixo de apupos e insultos. Houve um até que viu seu automóvel incendiado.
À medida que os dias se passavam as coisas pioravam e as aulas eram boicotadas. Muitos professores abandonaram as ilhas. Tivemos apenas a avaliação de dois períodos.
No ano lectivo seguinte (1974/75), o elenco de professores mudou radicalmente. Alguns cabo-verdianos da diáspora e de esquerda, vieram nos substituir os conteúdos de Filosofia de pensadores clássicos, pelos do Materialismo Dialéctico, assim como a de Organização Política que passou do corporativismo do Estado Novo para os “meios de produção”, “ditadura do proletariado” etc.
Nesse ano, as grades deixaram de ter efeito e os estudantes misturavam-se e conviviam sem medos nem receios. É claro que o aproveitamento foi menor mas estava-se bem e ansiosos pelo dia da independência
Como se vê, comecei e acabei, irmanado com as transições, mudanças e inovações.
Este texto foi publicado num trabalho coordenado por: PEREIRA, Sara Marques., ed. Memórias do liceu português.Lisbon: Horizonte, 2006. Colecção Biblioteca do Educador. Lge. 8°, orig. illus. wrps. 319 pp., illus.ISBN: 972-24-1426-7.
Caríssimo Jorge, colega do 1º, 2º, e 3º ano de Liceu. Obrigado por teres despertado em mim algumas memórias bem guardadinhas nalgum canto da minha mente.
ResponderEliminarGostaria se possível, saber os nomes dos colegas da foto. Já notei o Cadjodje que continuei a ver aqui nos EU, o Julinho Fortes, o Hermínio, o Tony Pantchol e talvez o Lito(?). Das moças não reconheço nenhuma.
Também se fosse possível, gostaria de ter uma lista de todos os alunos das nossas turmas no 1º, 2º, e 3º ano do liceu.
Eu tirei o curso de Engenharia Mecânica e trabalhei na construção de submarinos nucleares durante 16 anos.
Um grande abraço do colega
Ildefonso Tito Teixeira de Sousa Vasconcelos
Ora viva, saudoso Ildefonso!
ResponderEliminarMuito me alegra saber de ti e do teu trabalho em submarinos nucleares (o curso que eu sonhava tirar aquando da estadia nesse liceu era o de Físico Nuclear!).
Pois é, eis os nomes da foto:
em pé, da esquerda para a direita - Cadjodje, Santinhos(Contente), Mendes (Crotche), Simão Barbosa, Raquel (Quelinha), Gueth, TonyPantchol (Tober), Mira Pantchol, Filomena di Maio, Sá Nogueira, AnaVirgínia, xxx? e XXX?
De cócoras: Silvano Barros, Hermínio Silva, Artur José Barbosa (irmão de Simão) Julinho Fortes, Carlinhos Guardafui, Jorge Brito.
Logo que puder procurarei ver se é possível obter as tais listas, no Liceu.
Abraço a ti e a todos os colegas
Jorge