domingo, 17 de janeiro de 2010

A.A.O. o anacoreta comunista entre o "grogo" de Santo e a aguardente do Diabo

Segundo reza a história, a 17 de Janeiro do ano 356, morria Santo Antão do Deserto, um monge nascido em 251, no Alto Egipto. A Igreja católica celebra este dia como o dia de Santo Antão. E foi assim que, quando em 17 de Janeiro de 1462 Diogo Afonso avistou a nossa ilha mais setentrional, atribuiu-lhe o nome de Santo Antão (veja aqui um apontamento interessante da Inforpress).

A leitura desse apontamento deixou-me curioso sobre a vida deste santo. Após um sobrevoo na Internet, fiquei a saber que o apelidavam ainda de: "o Eremita" ou, de "o Anacoreta". Palavra estranha esta última, que me fez lembrar um amigo, o embaixador português Eugénio Anacoreta Correia, além de me trazer à memória um solitário personagem, que muito me impressionou: António Augusto de Oliveira. Este senhor do Paúl, podia perfeitamente ser apelidado desse nome (anacoreta) se não fosse o facto de não ser nada religioso!

AAO, como assinava seu nome, possuía uma propriedade no verdejante vale do Paúl. Certa vez, acompanhei uma delegação de Professores universitários portugueses meus amigos a Santo Antão. Fomos levados à propriedade de António Oliveira, que nos recebeu muito bem e nos fez saborear um excelente grogo , debaixo de uma lendária árvore (uma amendoeira) que, contou-nos ele, pacientemente foi domando os ramos, de forma a constituir uma copa em redoma, onde os humanos pudessem disfrutar de sombra e de um espectáculo ímpar de cores e de raios de luz que dançavam por entre a folhagem e iluminavam amareladas folhas que sobre o solo jaziam.

Este então nonagenário senhor (o segundo a contar da esquerda, na fotografia ao lado) fez-nos saber que tinha sido militante do Partido Comunista Português e que o pai era um amante da botânica, tendo trazido para a ilha várias espécies vegetais, entre as quais uma variedade peculiar de cana-do-açúcar. Homem mui culto e de grande sabedoria, não deixou que lhe chamássemos de doutor, alegando não ter completado nenhum dos cursos em que se inscrevera.

Companheiro de Álvaro Cunhal e de Mário Dionísio (conhecido pintor neo-realista português), António Augusto de Oliveira sonhava poder vir a ser um conhecido pintor. É deveras interessante ler o que Mário Dionísio escreve na sua autobiografia, sobre três de seus amigos, entre os quais António Augusto:

Dos amigos que mais me acompanharam nesses anos difíceis, três havia que falavam muito de arte, particularmente de pintura. Eu ouvia-os, feliz. Fe­liz, via e revia os álbuns que me traziam para me ajudarem a dar menos pelo tempo, esses meses passando sobre os meses, os anos sobre os anos, radiografias, saídas periódicas para fazer o pneumo­tórax até quando? Via esses álbuns e sentia alguma coisa reacordar em mim.

Um dos tais três amigos desenhava muito bem, era o Álvaro Cunhal, e falava-me, com o espírito insinuante que era o seu, de museus da Europa, tantos museus!, tantos artistas! Käthe Kolwitz, uma paixão que partilhei com ele. E mandámos fa­zer seis grades a um carpinteiro meu conhecido, três para cada um, para esticar nelas telas, para pintar. Tê-las-á usado? Eu, sim. E mal. Outro, o Huertas Lobo, que faleceu há pouco, era filho de pintor, conhecia a história da arte do princípio pa­ra o fim e do fim para o princípio e ofereceu-me a caixa de óleos do pai, prova inestimável de amiza­de, o que fora do pai era sagrado para ele. O ter­ceiro, que queria ele próprio ser pintor, trouxe-me todas as suas tintas e não descansou enquanto não me viu servir-me delas. E curioso o respeito e a curiosidade (a secreta cupidez) que uma caixa de tintas me inspirava. Até o cheiro, que delícia! E a que ele me trazia, mais para eu ver, estava cheia de bisnagas de cores desconhecidas. Mas eram de­le, está claro, não me atrevia a tocar nelas. Chamava-se António Augusto de Oliveira (assinatura hieroglífica: 2 A A e um O) regressou à sua terra — Cabo Verde — a instâncias do pai, que o não via avançar no curso de Direito, onde em verdade nunca pusera os pés, e pouco mais soube dele se­não que não chegou a ser pintor. Mas era o mais teimoso. Vendo uma pequeníssima paisagem que eu ousara fazer com as tintas dele, disse-me, impa­ciente: «Deixe-se de diletantices, por favor. Pinte mesmo. A sério». Falava-me, encantado, de Gauguin (o que ele quereria ser, Cabo Verde, o inte­rior, um novo Taiti, eu bem o entendia) e de ou­tros autodidactas da aventura criadora. Chegava a ofender-se: «Está à espera de quê?»

Mas a teimosia de AAO, o engenho do mesmo em fazer curvar a amendoeira à sua maneira, as suas deambulações pela arte, pela política e pelo Direito, não podiam deixar de invocar nas minhas meninges a figura do " jornalista, editor, autor, maçon, filantropo, abolicionista, funcionário público, cientista, diplomata, inventor e xadrezista americano" que foi Benjamin Franklin. De facto, estar debaixo dessa frondosa árvore, seria um perigo em dia de trovoada! Daí a pensar no inventor do para-raios é apenas um passo.

Finalmente uma nota de apreço pela aguardente seleccionada com que nos brindou AAO, aguardente esta, que não era nem falsificada, nem conspurcada. Imagino o pai do AAO (Sr. Serafim, se bem me lembro) nos anos trinta, a produzir essa aguardente (de cana seleccionada) para sustentar o filho que , preferia fazer política e pintura, a seguir a trilha do Direito. Enquanto isso, nos Estados Unidos, Al Capone vendia bebidas desta natureza às escondidas e sob um alto clima de violência, crime e repressão. Mil vezes este saboroso grogo dos Oliveira, bebido na tranquilidade do pacato vale do Paúl, do que a duvidosa aguardente do Alfonso, caríssima e impregnada de sangue!
  • Benjamin Franklin nasceu a 17 de Janeiro de 1706
  • Alphonsus Gabriel Capone nasceu a 17 de Janeiro de 1899
Se a Al Capone lhe tivessem dado o nome do santo festejado no dia em que nasceu, falar-se-ia nos USA da "maldita aguardente do Diabo Antão". Haveria no mundo, a aguardente de Santo Antão e a aguardente do Diabo Antão.

1 comentário:

  1. Excelente história. E a árvore? Ainda está de pé?(preocupações botânicas de quem andou em Agronomia sem conseguir terminar o curso...)
    :))

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